This is an authorized translation of an Eos article. Esta é uma tradução autorizada de um artigo da Eos.
Por toda a vasta bacia amazônica, porções espalhadas de terra preta e marrom-chocolate contrastam fortemente com os solos ácidos vermelhos ou amarelos, pobres em nutrientes, encontrados no restante da floresta tropical. Os solos escuros são extraordinariamente férteis, e as comunidades de plantas que crescem ali são diferentes das da floresta ao redor—com uma taxa de biomassa mais alta e uma proporção maior de espécies comestíveis como castanheiras e açaizeiros. Muito frequentemente, eles contêm artefatos como peças de cerâmica ou fragmentos de ferramentas feitas de pedra.
Estes solos são chamados de “terra preta”, solos escuros amazônicos (ADEs), ou simplesmente solos escuros, pois foram identificados na África, Austrália, Europa e em outras partes, além da Amazônia. Também são chamados de antrosolos, pois quase todos os pesquisadores concordam que foram criados pelo homem. Os solos escuros foram encontrados em centenas de sites arqueológicos em toda a bacia amazônica cobrindo cerca de 6.000 a 18.000 quilômetros quadrados. Um estudo usou a modelagem para estimar a possibilidade de que os solos de terra preta, na verdade, possam cobrir mais de 150.000 quilômetros quadrados, ou 3,2% de toda a floresta.
Antes de os europeus chegarem às Américas – trazendo conflitos, exploração, e doenças infecciosas que mataram mais de 90% da população—a Amazônia fervilhava de vida humana. Os arqueólogos ainda estão discutindo quantas pessoas viviam lá antes da conquista europeia, mas várias estimativas sugerem que eram entre 6 e 10 milhões.
Os indígenas amazônicos construíram suas casas em penhascos com vista para os rios, onde pescavam, caçavam, coletavam e plantavam. Eles cultivavam várias plantas, incluindo a mandioca, a batata doce e o cacau. Realizavam extensas obras de terraplenagem, abriam estradas e modificavam pântanos. Faziam pequenas queimadas de baixa intensidade para administrar o local. E como todo ser humano em todos os lugares, eles produziam lixo: espinhas de peixe, conchas, cascas de mandioca, esterco, ervas daninhas e resíduos de colheitas, cerâmica e carvão.
Ao longo de gerações, eles transformaram esse lixo em tesouro, criando uma terra rica e fértil, boa para o cultivo de safras. Ao mesmo tempo, o processo retirou grandes quantidades de carbono no solo. Agora, cientistas de uma ampla gama de disciplinas estão escavando a terra preta em busca de respostas — não apenas pela nova história que ela conta sobre o passado da Amazônia, mas também pelas lições, possibilidades e avisos que ela pode conter para o futuro da Terra.
Ajudando as Plantas a “Crescerem Felizes”
No passado, explicações não humanas para a formação da terra preta sugeriram: sedimentação a partir de enchentes, acúmulo de matéria orgânica em lagos e pequenas lagoas e precipitação de cinzas de vulcões andinos.
Em 2021, inclusive, pesquisadores norte-americanos e brasileiros publicaram um artigo sugerindo que a alta fertilidade das terras pretas da Amazônia eram o resultado do depósito de nutrientes pelos rios. Os autores argumentam que povos pré-colombianos identificaram essas áreas de fertilidade aumentada e se estabeleceram ali. “Os povos indígenas aproveitaram os processos naturais de formação da paisagem”, eles escrevem, “mas não foram responsáveis por sua gênese”.
No entanto, a maior parte dos arqueólogos, cientistas do solo, geógrafos e antropólogos que trabalham na Amazônia diz que há pouca dúvida de que as terras pretas tenham sido criadas por seres humanos. Os ventos predominantes sopram na direção errada o que exclui o envolvimento de vulcões. Solos enriquecidos são encontrados frequentemente no topo de penhascos — locais com pouca probabilidade de inundar ou coletar água, mas maravilhosos para se viver. As inundações não podem explicar a grande variedade de tipos de paisagens em que as terras pretas são encontradas, nem por que elas geralmente estão cheias de fragmentos de cerâmica, nem o fato de as escavações geralmente as descobrirem dentro ou ao redor de montes, fossos, caminhos e valas feitos pelo homem.
As origens precisas da terra preta permanecem obscuras, mas a vida dos povos indígenas contemporâneos na Amazônia de hoje nos dá uma ideia de como essas terras pretas podem ter sido criadas. O arqueólogo Morgan Schmidt, um afiliado de pesquisa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), passou anos pesquisando os solos em parceria com o povo Kuikuro do alto rio Xingu, no estado brasileiro do Mato Grosso, local onde seus ancestrais vivem há séculos.
Até hoje, os fazendeiros Kuikuro criam propositalmente terra preta para o cultivo de safras — eles a chamam de eegepe — e a composição do solo e seus padrões espaciais são semelhantes aos encontrados em torno de sítios arqueológicos. Os Kuikuro jogam comida e resíduos de fogueiras em montes de lixo ao redor de suas casas, disse Schmidt, e depois de alguns anos, plantam safras e árvores frutíferas em cima.
“Eles estão gerenciando constantemente essas plantas e essas plantações no quintal e melhorando o solo o tempo todo”, disse Schmidt. “Eles estão realmente orgulhosos de serem capazes de tornar esse solo fértil para que as plantas possam ‘crescer felizes’, como dizem”. Esses solos modificados acabam se tornando ricos em fósforo, nitrogênio, cálcio e carbono, com um pH muito mais alto do que outros solos amazônicos.
Um colega indígena, Kanu Kuikuro, descreveu a receita para Schmidt: “Nós varremos o carvão e as cinzas, juntamos e depois jogamos onde vamos plantar, para virar um belo eegepe. Lá podemos plantar batata-doce. Quando você planta onde não tem eegepe, o solo é fraco. É por isso que jogamos as cinzas, as cascas de mandioca e a polpa de mandioca ali”.
Os Kuikuro também viajam para sítios arqueológicos próximos para cultivar plantações nas terras pretas mais antigas de lá. Hoje em dia, eles vão de moto. Seus montes de lixo contemporâneos agora contêm uma bateria estranha e um pedaço de plástico. Mas, em geral, Schmidt acha que os fazendeiros Kuikuro estão criando terra preta da mesma forma que seus ancestrais pré-colombianos fizeram — os antigos fizeram isso em uma escala muito maior porque havia muito mais deles. Mas será que eles também estavam fazendo isso deliberadamente, para melhorar o solo?
“Não há como sabermos o que as pessoas pensavam no passado”, disse Schmidt. “É muito difícil encontrar evidências de intencionalidade. Mas o povo Kuikuro com quem trabalhamos demonstrou continuidade na área, e encontramos o mesmo padrão de enriquecimento do solo na vila moderna e nos sítios pré-históricos, então podemos ter quase certeza de que no passado, eles estavam fazendo as mesmas coisas”.
Solos Férteis, Florestas Propensas a Secas
Quando os habitantes de áreas tropicais úmidas se vão, a maioria dos sinais de ocupação humana se torna invisível após 500 anos. Casas de madeira e edifícios cerimoniais apodrecem. Estradas ficam cobertas de vegetação. Montes, valas e outras obras de terraplenagem ficam escondidas pela vegetação, tornando-se visíveis apenas quando a floresta é desmatada.
Mas abaixo da superfície, a terra preta coberta de cerâmica continua sendo um sinal tangível da ocupação humana. Descobrir quanto dela existe deverá esclarecer a extensão em que os humanos modificaram a floresta tropical, bem como a quantidade de carbono contida ali.
Não tem sido fácil mapear a extensão da terra preta, dado o tamanho da Amazônia, a distância em que partes dela estão e o espesso dossel. (Muitos sítios arqueológicos foram, na verdade, descobertos pelo acelerado desmatamento no Brasil.) Pesquisas recentes, no entanto, sugerem que a sombra das terras pretas pode ser vista do espaço.
A paleontóloga Crystal McMichael da Universidade de Amsterdam e seus coautores usaram imagens de satélite para identificar assinaturas espectrais — diferenças em como a luz é refletida em florestas que crescem em terra preta e aquelas em outros solos da Amazônia.
Eles provaram que o sensoriamento remoto pode capturar perturbações florestais antigas e identificar a terra preta, mas o que eles encontraram os surpreendeu. McMichael esperava que terras pretas férteis sustentassem árvores verdes e exuberantes, resistentes à seca. Os resultados mostraram o oposto: na verdade, florestas crescendo em solo antropogênico tinham menos dossel verde com menor teor de água em comparação a outros solos, e essas diferenças foram acentuadas após anos de estiagem, tornando as florestas de terra preta mais propensas a incêndios e suscetíveis à seca.
Há várias explicações possíveis para essa discrepância, disse McMichael. Outros estudos descobriram que as terras pretas tendem a dar suporte a diferentes tipos de árvores, incluindo uma proporção maior de espécies de palmeiras comestíveis, o que implica que os povos pré-colombianos mudaram a estrutura da floresta. Talvez essas áreas de floresta ainda estejam se recuperando de queimadas periódicas controladas e desmatamentos — afinal, 500 anos são apenas algumas gerações de árvores.
Ou talvez, esses solos ricos tenham continuado a atrair fazendeiros por séculos, disse McMichael. “O legado de usá-los continua até hoje, e acho que é parte do motivo pelo qual não há coisas gigantescas e exuberantes aqui, mas sim essas florestas ricas em palmeiras de menor porte lá”.
“Guardiões Desta Pegada Antiga”
É verdade que os agricultores tradicionais valorizam as terras pretas, disse o etnoecologista André Junqueira da Universidade de Wageningen, na Holanda, mas a relação não é tão simples quanto ele esperava quando começou sua pesquisa. Junqueira estudou como os caboclos — atuais povos amazônicos de ascendência mista — cultivam as paisagens ao longo do Rio Madeira, no Brasil. Os caboclos apreciam a alta fertilidade das terras pretas e plantam algumas de suas safras e variedades mais exigentes em nutrientes nela. Mas as ervas daninhas, assim como as safras cultivadas, crescem como fogo nessas terras, disse Junqueira, “então elas realmente exigem muito mais trabalho para serem mantidas”.
“Da perspectiva de um agricultor, o que mais ele gosta é de ter diferentes tipos de solo que possam sustentar múltiplos sistemas de cultivo e um portfólio mais amplo de culturas”, ele disse. Os caboclos foram atraídos para áreas da floresta onde há uma mistura de terra preta e solo comum—e a alta concentração de árvores e palmeiras úteis encontradas perto de sítios arqueológicos também foi um bônus.
Ao usar essas paisagens, eles “mantiveram e amplificaram o legado pré-colombiano”, disse Junqueira. “De certa forma, eles são como guardiões dessa pegada antiga e, por meio de suas práticas atuais, continuam adicionando complexidade e heterogeneidade à floresta”.
Mas Junqueira suspeitava que os fazendeiros caboclos não estavam necessariamente buscando o solo mais fértil. Em parte, as pessoas continuaram usando essas florestas antropogênicas pela mesma razão pela qual os humanos sempre escolheram suas casas: localização, localização, localização. “As pessoas hoje continuam usando o mesmo critério que usavam no passado para escolher uma área para viver: penhascos altos, bem na margem de rios, perto de uma fonte de água limpa”.
Esse padrão é exatamente o que Schmidt e o geólogo do MIT Samuel Goldberg e seus colegas encontraram em seu próprio esforço de sensoriamento remoto e aprendizado de máquina. Ao sobrepor várias faixas de imagens de satélite do território indígena do Xingu, eles puderam prever as áreas de terras pretas com uma precisão razoável. “Encontramos um padrão generalizado de depósitos de ADE localizados nas bordas de penhascos de rios nas terras altas adjacentes às planícies de inundação”, disse Goldberg em uma apresentação na Reunião de Outono da AGU em 2021.
No total, disse ele, previu-se que as terras pretas cobririam de 250–700 quilômetros quadrados, ou até 2,7% da região. A multiplicação dessa área pela densidade de carbono e profundidades do solo que já foram medidas em estudos de campo sugeriram que solos antropogênicos no território indígena do Xingu podem estar retirando de 3 a7 megatons de carbono extra, além da quantidade naturalmente armazenada no solo.
Aplicar essas densidades à Amazônia como um todo — algo que Goldberg admitiu ser “simplesmente especulação” neste estágio — significaria que as terras pretas da Amazônia poderiam estar prendendo tanto carbono quanto a quantidade emitida anualmente pelos Estados Unidos. Precisamos trabalhar mais para descobrir se esse é realmente o caso, disse Goldberg, “mas isso sugere que o ADE pode ser um reservatório substancial de carbono orgânico no solo”.
Belo Biochar
À medida que o dióxido de carbono (CO2) se acumula perigosamente na atmosfera e as nações lutam para alimentar populações crescentes de forma sustentável, uma técnica que retira o carbono e melhora o solo para a agricultura parece ser uma bala de prata. E, de fato, estudos sobre a terra preta levaram a um esforço de pesquisas global sobre a possibilidade de mitigação climática de enriquecer os solos com carvão vegetal, criando um análogo moderno simplificado da terra preta, chamado biochar.
A terra preta “definitivamente foi uma inspiração” para o biochar, disse Johannes Lehmann, um pesquisador de biochar e biogeoquímico de solo na Universidade Cornell em Ithaca, N.Y., mas o ponto não é recriá-la perfeitamente. As terras pretas feitas por indígenas da Amazônia contêm resíduos de peixes, esterco e cerâmica, elementos geralmente ausentes do biochar. O biochar tem o objetivo focado de extrair dióxido de carbono da atmosfera ao mesmo tempo em que melhora os rendimentos agrícolas.
A principal técnica para criar o biochar, chamada pyrolysis, envolve carbonizar resíduos de vegetação a baixas temperaturas em um ambiente com pouco ou nenhum oxigênio. “Se você a privar de todo o oxigênio, não poderá oxidar um pedaço de madeira em CO2 e água—e deixará muito carbono para trás,” disse Lehmann. O mesmo pedaço de madeira deixado para apodrecer ou queimado em condições normais (ricas em oxigênio) liberaria seu carbono na atmosfera de minutos a meses. Quando a vegetação é carbonizada, o carbono permanece aprisionado durante décadas ou até séculos. “Ele é muitíssimo mais persistente”.
Pesquisas recentes descobriram que o biochar melhora o solo em alguns contextos e tem o maior potencial de mitigação climática que qualquer esforço baseado na terra, incluindo a agrofloresta e o reflorestamento — embora Lehmann tenha salientado que nada é mais eficaz do que manter as florestas de pé. Mais de 300 empresas já estão produzindo produtos comerciais de biochar.
Ainda assim, é cedo para a indústria. Como tecnologia, o biochar está onde a energia fotovoltaica estava na década de 70, disse Lehmann. “Na década de 70, todos nós dizíamos que a energia fotovoltaica salvaria o dia, mas levou 40 anos até que algo acontecesse”. Aplicar carvão vegetal ao solo pode parecer relativamente simples — e, de fato, é uma das poucas medidas de mitigação que podem ser iniciadas agora — porém, são necessárias mais pesquisas e experimentações práticas para determinar onde e como ele pode ter o maior efeito, disse ele.
E o mais importante, os próprios agricultores precisam ver um benefício no biochar, disse Lehmann. “Não acho que podemos esperar que um produtor de abacate seja um agricultor de carbono. Se colocar biochar nas árvores de abacate não melhora os abacates, então, francamente, não me importo se ele retira carbono. Um usuário da terra fará isso se descobrir que isso é bom para seu solo”.
Aumentar a escala levará tempo, então. “Esse é o calcanhar de Aquiles de um sistema distribuído, certo? É mais difícil de escalar do que uma usina de energia a carvão ou uma injeção de CO2 em um grande buraco. Mas também tem beleza. É mais robusto quando está lá, e provavelmente é mais sustentável à medida que se desenvolve”, disse Lehmann. “A pior coisa que pode acontecer é termos alguns milhões de agricultores felizes, mas não ter salvado o clima. Eu chamo isso de estratégia sem arrependimentos”.
Alguns pesquisadores, no entanto, estão preocupados que a comercialização de biochar possa levar ao desmatamento ilegal, já que as empresas de biochar buscam as matérias-primas mais baratas para pirolisar. Além disso, eles argumentam que o biochar deve sua existência aos conhecimentos indígenas das comunidades amazônicas. Se houver lucros a serem obtidos, os povos indígenas serão beneficiados?
Transformar terra preta em uma mercadoria também pode ter implicações para locais antigos da Amazônia. Os arqueólogos permanecem deliberadamente vagos sobre as localizações precisas da terra preta para proteger esses locais, disse McMichael. Em algumas partes do Brasil, sítios de terra preta já estão sendo minerados para solo de envasamento ou escavados para construir cidades modernas. “Há centenas de sítios arqueológicos com terra preta sendo destruídos enquanto falamos”, disse Schmidt. “Eles são protegidos por lei, mas não há fiscalização”.
E eles são insubstituíveis. Destruir esses pedaços de terras preciosas implica uma perda de história, de cultura, de terras férteis para cultivo e de biodiversidade, disse Schmidt. “Além disso, qualquer carbono armazenado nesses solos será emitido para a atmosfera”. A resposta, no entanto, não é trancá-los. A melhor maneira de preservá-los, ele suspeita, é que as comunidades tradicionais continuem vivendo neles, cultivando-os com ferramentas de baixo impacto que não perturbem excessivamente o solo e, por meio de suas ações, mantendo o legado milenar do passado humano da Amazônia.
Informação Sobre a Autora
Kate Evans (@kate_g_evans), Autora Científica
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